Planeamento Familiar

Há meses fui ao ginecologista e escrevi isto, é preciso explicar que uma mulher sente sempre qualquer coisa assim indefinida antes de ir ao ginecologista. Uma espécie de nervoso miudinho que antecede uma ordem de "relaxe, relaxe". Disfarcei a minha sensaçãozinha observando outras mulheres e escrevendo o que ia pensando.

27 de Agosto
Na sala de espera para uma consulta de planeamento familiar, sentam-se à minha frente duas moças. Uma de uma beleza simples e outra feia. São ambas do campo. A feia, além de ser feia, tem a tristeza estampada na cara.

A outra está bem mais aliviada. Quero imaginar que a feia vem fazer um aborto, tal é o desconsolo com que está sentada. As duas trocam palavras às vezes, e que pouco fazem alterar a inclinação dos cantos da boca da feia triste. Muito caídos, pobre rapariga. Custa imaginá-la nos braços de um rapaz em grandes folias. Tem olhos de São Bernardo.

Há uma má música que enche a sala e que disfarça o tempo terrível que faz em todo o arquípélago. Mas não há nenhum rádio nem colunas, o que é estranho. Será que vou ouvir o meu nome quando me chamarem?

Volto a olhar para as raparigas. O meu médico, de quem gosto muito porque não me chateou na minha gravidez, é o único a fazer IVG's nas ilhas aqui em volta. Percebo agora que a música vem do telemóvel da bonita simples. Não simpatizo com elas. E a simples, afinal, nem chega a ser bonita. É ligeiramente estrábica e faz demasiado as sobrancelhas.

Um amigo meu disse que um outro amigo meu era inócuo. Na verdade o que ele queria dizer era algo como insondável ou impenetrável. Isto a propósito de um assunto muito específico que não importa aqui. Mas fiquei a pensar naquilo. Se há coisa que esse tal não é, é inócuo.

O facto de elas virem juntas, assim, duas amigas, ou primas (não podem de forma alguma ser irmãs) reforça a minha teoria do aborto. A das sobrancelhas depiladas sugeriu que fossem buscar uma revista. Trouxeram a Maria e agora cochicham enquanto a lêm. Imagino que a ideia é pensarem em desgraças na mesma, mas que ao menos não são delas próprias.

Reparo agora que a das sobrancelhas tem mala e a feia não. Por isso estou enganada. Se calhar a das sobrancelhas veio só pedir a pílula, daquelas que se metem debaixo da pele e a outra é só infeliz por ser feia.

A enfermeira chama a Tatiana, levantam-se as duas, com a sorridente das sobrancelhas à frente e a outra macambúzia atrás. Nunca vi acompanhantes a ir à frente das pacientes (ou utentes, como agora se chama aos doentes, para não lhes chamar doentes, até porque esta nem estava doente). A minha sórdida teoria cai assim por terra e esta manhã teve ainda menos interesse do que eu julgava.

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